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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A afixação de símbolos religiosos em órgãos públicos

Que noventa por cento do país é cristão é um fato. Isso, contudo, não legitima a imposição da maioria às minorias de tolerarem a difusão de valores de um dado segmento religioso por órgãos estatais seja através de atos de seus agentes, seja de atos próprios (v.g., feriados religiosos), porque isso é o mesmo que dizer por vias oblíquas que os demais, como minorias, não estão em mesmo patamar de igualdade.

O fato de essas manifestações repetirem tradições históricas da cultura brasileira não as impedem de deflagrarem práticas inconstitucionais. Como exemplos não exaustivos disso temos a discriminação social e o fisiologismo, ambos marcas registradas de inegável identidade nacional e que, nem por isso, podem ser legitimamente reivindicados, haja vista não serem albergados pela Constituição nem implicitamente.

A afixação de crucifixos ou quaisquer outros símbolos religiosos em repartições públicas constituem uma afronta direta à Constituição, em especial aos art. 5º, caput; art. 19, inciso I; e, ao art. 37, caput. Não existe confusão entre Estado ateu e Estado laico nisso, pois não se propõe que o ateísmo seja abraçado pelo Estado como orientação oficial. É justamente pelo pensamento que as questões religiosas devem ser mantidas à margem do Estado que se vislumbra as inconstitucionalidades supramencionadas.

Tomemos como exemplo os tribunais de justiça brasileiros. O art. 92 da Constituição diz que são órgãos do Poder Judiciário os tribunais e os juízes - Em tempo, chamo atenção para a impropriedade do termo no que se refere aos juízes. Órgãos são repartições da Administração Pública desprovidas de personalidade jurídica, subjacentes aos entes federativos e sobrejacentes aos agentes públicos. Os juízes, por natureza pessoas físicas, pertencem a essa última classe.

Em sabendo que a Administração Pública é regida pelo princípio da impessoalidade, que pode ser entendido como aquilo "que não pertence a uma pessoa em especial", e que os órgãos públicos são compartimentos onde o Estado manifesta a sua vontade através dos seus agentes, fica evidente o desvio no exercício da função pública quando o juiz caracteriza o órgão público onde exerce seu mister com um símbolo religioso.

Repartições públicas não são propriedades privadas, não são o domicílio de ninguém e, pois, não se prestam a serem adornadas com quaisquer símbolos religiosos que sejam. Não se trata de criar embaraços à livre expressão de consciência em órgãos públicos, apenas se requer seja ela expressa nos limites de cada individualidade. Um agente público que queira portar um crucifixo no pescoço, usar um quipá, vestir um véu, entre outros, se assim sentir vontade, que o faça, mas, sabendo que inexiste direito de liberdade religiosa absoluta que o permita propagar a sua fé decorando órgãos de Estado.

O fato de sermos um país de tradição cristã, de cultura cristã, de maioria cristã não torna indene a agressão aos princípios que regem a Administração Pública, tampouco daí decorre que o Estado deverá proporcionalmente tolerar essas discriminações. As referências a Deus, a símbolos religiosos e, especialmente, à cruz violam, sim, direitos, estabelecem diferenças onde essas não deveriam existir, e não podem ser havidas como sinônimos de liberdade de consciência.

5 comentários:

Caio Jordão disse...

Na época da eleição, tentou-se criar polêmica com a candidata Dilma, dizendo que ela era atéia. Se ela assumisse essa condição, não seria eleita, então teve que passar a reta final quase como uma pastora evangélica, citando Deus o tempo todo. Isso quer dizer que boa parte dos brasileiros ainda confunde religião com caráter. Então mesmo a lei dizendo o contrário, prevalecerá o "jeitinho brasileiro" e a "vontade" de nosso senhor. Amém.

Sergio G. M. Rodrigues Jr. disse...

Caro colega,
É com muita satisfação que venho de ler seu interessante artigo acerca da laicidade do Estado e da utilização de símbolos religiosos nos órgãos da Administração Pública. Com juízo claro e sem falsa erudição você toca no cerne da questão: o Estado é laico e assim deve ser mantido. A questão é relevante e pertinente, pois há um determinado segmento religioso que tem indisfarçáveis tendências a extinguir o Estado laico e inaugurar o Estado vinculado à sua orientação religiosa. O exemplo do fisiologismo e da discriminação são de rara felicidade e tocam o ponto crucial da discussão. Ainda agora o TJRJ acaba de conceder uma liminar ao MP, que em sede (salvo engano) de ação civil pública, pleiteou a proibição de pregação religiosa nos trens da Central. Tal prática vinha se tornando rotineira e começou a gerar animosidade entre os passageiros que comungavam de outras orientações religiosas. Parabéns!

N.B. disse...

Como lidar quando a mais alta corte do país exibe um símbolo religioso na parede? E porque ninguém por lá mesmo questiona isso? Eu não entendo... Ótimo texto. abç

http://www.ednelsonprado.com/wp-content/uploads/2011/10/05_MHG_pais_STF.jpg

Neko on mind- disse...

Texto excelente! Muito bom, me esclareceu diversas dúvidas que tinha sobre o assunto. Agora vai uma pergunta: Em escolas públicas isso também é inconstitucional, certo?
Estudo na ETEC Lauro Gomes, de São Bernardo, e bem na porta da nossa biblioteca existe uma imagem de Jesus Cristo.

Obrigada.

Vinícius Monte Custódio disse...

Sim, igualmente inconstitucional, é órgão público da mesma forma.

Indo além, entendo que é inconstitucional até mesmo em colégios particulares seculares, quero dizer, os que não sejam declaradamente religiosos.

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